sábado, 26 de dezembro de 2009

SAUDADES DO NATAL DE 2008!


É manhã clara de 25 de dezembro. O céu é de uma brancura que ofusca os olhos. Ainda não chegamos ao ocaso de 2009, o pior ano das nossas vidas. Depois de ter resistido à tentação, dobro-me aos anseios da alma, que não sossega em busca dos episódios de um ano atrás. Nossa gente sofreu a perseguição mais cabal ao longo de todo um ano, e muitos estão em silêncio, esperando que passe a noite longa da inquisição. Talvez fosse melhor deixar para escrever depois, em tempos em que as palavras deixem de ser instrumentos de condenação. Sim, no nosso tempo, as palavras ainda são instrumentos de condenação!

Nenhum de nós quer esconder os acontecimentos do ano passado. Era natal, tínhamos dividido os frutos da terra entre os iguais, nas portas dos quartéis. Para quem estava de serviço, foi o natal mais bonito, pois todos os companheiros estavam ali, e também estavam as famílias, com crianças, mesmo aquelas de poucas semanas de vida. Um sentimento natalino jamais experimentado pela maioria de nós, viver o natal assim, entre todos os iguais, com as pessoas mais queridas, com os companheiros mais extremados.

Mas, mesmo que as palavras ainda sejam instrumentos de condenação, omiti-las é pior, pois, não ditas, calejam o que temos de melhor, a capacidade de sentir, de amar, de atirar tudo na busca de uma vida melhor. Usem-nas, contra mim, se quiserem, e, como disse no último janeiro, se deixarem todos os outros de fora, eu assino onde for preciso para que possam condenar-me. Não posso, no entanto, deixar de dizê-las, pois isso seria pior do que estar preso.

É manhã de 25 de dezembro. Em outros tempos corríamos para a árvore, para os braços dos pais, dos avós, e éramos felizes em manhãs como esta. Hoje não estou triste; apenas comovido. Comovido com a idéia do natal que queríamos construir. Não deixaram! Por que será que tantos buscam matar o espírito de natal? Hoje não buscamos árvores, nem presentes coloridos; corremos atrás do sentimento humano, e, se quiserem, cristão, de dar uma solução humanitária para as chagas das nossas instituições. Não queremos um natal de comércio, de alegrias pueris do mercado de coisas. Queremos um natal de humanos, com sentimentos genuínos, mesmo na singeleza de um abraço sem pacotes.

Não dá para achar um culpado, ou um autor talentoso, para os eventos do natal de 2008. Circunstâncias históricas seculares levaram àquilo. O certo é que, dentre todos os servidores de segurança, apenas os praças desejavam com todas as forças ver cumprida integralmente a Lei 254. Cada episódio desse ano de 2009 mostra que éramos apenas nós que colocávamos o cumprimento da Lei 254 em primeiro plano, e bem no alto. O outro grande setor de base, em 2009, agarrou-se ao plano de carreira, e aplaudiu o governo por isso. Os agentes prisionais colocaram como prioridade até mesmo assumir a guarda externa dos estabelecimentos penais, e ganharam com o silêncio da nossa cúpula. As cúpulas, ora, agora está claro que não queriam a Lei 254! Os delegados entraram na justiça para derrubar o que para nós ela tinha de melhor, e conseguiram. Os oficiais ficaram calados, mas desde há muito tempo alguns deles diziam que a Lei 254 era “inexeqüível”. Agora no dia 21 de dezembro último ficou claro que a direção dos oficiais não gosta da proporção de um para quatro a diferença entre o maior e o menor salário. O que eles defendem é uma proporcionalidade de oito vezes. E alegam que é um para quatro, mas deixam de dizer que é entre as carreiras. Como somos duas carreiras, somando quatro com quatro, temos oito. Só isso justifica estarem defendendo, junto ao governo, dois mil reais para os oficiais e 250 reais para os praças. O correto, seria 2 mil para o coronel, 500 reais para o soldado de um ano de serviço, e uma proporção intermediária para todos os outros postos e graduações.

Estas são as circunstâncias históricas mais recentes, que levaram aos acontecimentos de dezembro de 2008. A nossa gente cansou de ser enganada por um governo tratante, e por uma cúpula cínica. O governo é bom de palavra apenas no sentido de que as usa para enrolar quem acredita nele. E isso estão vendo agora também os oficiais. Demoraram um ano a mais do que nós para perceber isso.

O dia 25 de dezembro chegou apenas para a nossa gente, pois lá na cúpula não passa esse vento. A cúpula, com toda a sua força, fez meia volta é foi procurar o governador para tê-lo como aliado em sua luta tirânica de barrar a sansão do projeto de anistia. Sim, enquanto a maioria dos oficiais esperava ações contundentes dos seus líderes para que o governo lhes pagasse os dois mil reais de abono que concedeu aos delegados, estes mesmos líderes trocaram o abono de dois mil para ter o governador, mais uma vez, como seu advogado em favor da manutenção da inquisição.

Ninguém desenhou os acontecimentos do natal de 2008. As pessoas apenas se permitiram deixar levar por uma onda de sentimentos historicamente construídos. Tanto é verdade, que quem deu o passo decisivo foram as mulheres. E elas agiram assim porque sua maior sensibilidade fez explodir em ato aquilo que ouviram dos maridos ao longo de décadas. Então os maridos seguiram-nas, e não tinham o que fazer a não ser isso. Desde o dia 11 de dezembro daquele ano, um vento forte arrastava a nossa gente para as portas dos quartéis. E, em cada local, em cada episódio, as pessoas agiam com a carga de pulsação trazida pelas décadas, há mais de um século. O próprio dia 22 era para ser apenas 24 horas, até porque, se alguém defendesse naquela conjuntura que deveríamos deixar como estava, esperar o ano seguinte, certamente seria chamado de traidor. Era para ser apenas 24 horas, em apenas três cidades. Mas o vento era mais forte que a racionalidade, e não teve outra forma que não agarrar na crina do vento, e seguir.

Cada pessoa ocupou o posto que as circunstâncias impuseram, e nem sempre foi possível fugir ao indesejável. Os sacrifícios foram enormes, especialmente para quem estava longe de casa. As autoridades, e o governador em especial, se comportaram de forma deplorável. Luiz Henrique proibiu qualquer diálogo, e mesmo desautorizou seu comandante e seu secretário de continuar uma conversa iniciada por nossa iniciativa, na véspera do natal. Ele pensava que íamos embora naquela tarde, mas as pessoas disseram que só sairiam das portas dos quartéis dentro de um caixão. Diante da loucura de tentar liberar os quartéis à força, mesmo que com o risco evidente de combate e de morte, o comandante postou-se contra o uso da força. Mas, na manhã seguinte, 26 de dezembro, refizeram o pacto, à mesa do governador: nunca mais anistia, pelo contrário, punir de todas as formas possíveis, de “forma exemplar”. Esse pacto impede até hoje a paz na caserna catarinense. E esse pacto está vigente, quando o governador telefona para Brasília buscando impedir a sansão do projeto de anistia. Claro que é o governo quem está ganhando, pois esse empenho do governador significa um pacto entre ele e os dirigentes dos oficiais, os mesmos que estavam à mesa em 26 de dezembro de 2008.

Será que a maioria dos oficiais concorda em trocar os dois mil reais de abono pela advocacia do governador em favor da inquisição? Creio que não, mas, desgraçadamente, os militares são treinados para resignar-se mesmo diante de situações aberrantes.

Essa gana política do governador em aniquilar seus ex-aliados; essa gana ideológica dos dirigentes dos oficiais em punir de forma exemplar, mesmo sabendo que os principais punidos são da melhor estirpe de policiais e bombeiros, impede as soluções desejadas pela maioria, inclusive dos oficiais, qual seja, a pacificação das relações internas. A vontade política desequilibrada de um governador mentiroso, unida à gana de uma cúpula que, pela falta de outras qualidades, quer se afirmar pela força dos regulamentos e dos processos draconianos, obstrui há um ano a possibilidade de paz.

Aqueles homens de branco e aquelas mulheres de lilás do natal de 2008 traziam a mensagem da instituição que precisamos construir. Claro que todos e todas que estavam lá sabem que o desejável é as instituições estarem abertas e não fechadas! Claro que todos e todas sabiam e sabem que aquilo era o extraordinário. Mas era um extraordinário irresistível, imponderável, que ocorreu porque as condições históricas estavam dadas para que ocorresse. Racionalmente, ninguém queria que acontecesse, e nem quer que se repita. No entanto, continuando as condições objetivas a empurrar, a massacrar os sentimentos mais genuínos, a proibir, mesmo que pela força, pela coerção, a liberdade da palavra, desgraçadamente, estarão sempre latentes as condições para que o dezembro de 2008 volte a se repetir.

Mulheres de lilás e homens de branco irromperão pelos quartéis de todo o Brasil, provocando espantos, sujeitando-se a violências, mas dizendo, de forma clara e contundente: quem tem poder para mudar essa ordem de coisas, deve fazê-lo! Em outros estados, por vezes, oficiais acabam nas mesmas trincheiras. São aqueles que colocam os sentimentos de justiça e os objetivos humanitários acima dos postos, dos cargos, das carreiras. Era o que imaginávamos que ocorreria aqui, mas, calculamos errado, e ficamos sozinhos nas frentes dos quartéis na noite de natal, e alguns cabeças de dinossauro planejavam desalojar-nos à força.

Passado o dia 27 de dezembro, a atitude mais racional e mais humana seria restabelecer os elos internos, num pacto de homens e de mulheres que sabem o que querem, com diálogo e com justiça. Mas o comandante proferiu que excluiria trinta e prenderia mil, e isso fez com que as hostilidades prosseguissem. O que foi o ano de 2009 se não um amontoado de embustes? Aqueles discursos do governador nas tais vídeo-conferências; os arroubos desequilibrados do comandante; os projetos tendenciosos desenhados como vontade da maioria; a confirmação da discriminação salarial; o enfraquecimento, em todos os aspectos, das instituições militares estaduais e de seus servidores. Delegados, agentes prisionais, base da Polícia Civil, monitores, todos eles negociaram alguma coisa com o governador ao longo de 2009. Evidente que merecem o nosso respeito e até mesmo os nossos aplausos por terem conseguido. Vale o registro para ficar claro quanto perdemos!

Mas os dirigentes dos oficiais, que respondem também pelas instituições, pensam que ganhamos. Sim, houve a elevação do teto salarial, a exclusão de 13 praças honestos, a prisão de centenas, a volta do terrorismo nos quartéis. Quem mesmo ganhou com isso? Acho que não chega a trezentos oficiais, e só ganharam uns trocados a mais, pois, do ponto de vista do respeito interno, os dirigentes dos oficiais e das instituições perderam tudo, e nunca mais vão recuperar, nem na vida e nem na morte.

Estou com saudade do natal passado! Dos homens de branco e das mulheres de lilás! Estávamos apenas cumprindo desígnios de uma realidade que impele à tomada de posição. Seria preferível que episódios como aqueles nunca mais precisassem ser repetidos. Mas parece que os homens do poder querem manter a realidade que empurra homens e mulheres de fibras para atos que vão muito além do verbo.

Sim, parece que os homens da cúpula, os dirigentes dos oficiais, estão contemplados com a situação atual. O coronel recebe 16 mil; o major, oito; o tenente, quatro. O soldado, pensam eles, este pode ficar mesmo com “milepouco”! Para essa cúpula, parece que a instituição perfeita é aquela em que a maioria precisa viver mal, morar mal, ficar devendo no armazém da esquina, viver filando lanches nos botequins. É com essa filosofia que andam mandando que comparemos nossos salários com os salários dos operários, dos bóia frias, ou então que soltam, vez por outra, aquela frase maldita: “Não está contente, pede a baixa!” Para ser melhor ainda, na cabeça dessa cúpula, é claro, é preciso que os mecanismos de coerção estejam todos afiados, pois é a garantia de que os de baixo vão preferir a indignidade permanente do que a luta por melhores condições de vida e de trabalho.

Mas os anos passam, as gerações se entrelaçam nas mesmas casernas, nas mesmas misérias. Outros homens de branco e outras mulheres de lilás voltam a assaltar os céus, em qualquer dia do ano, ou em noites de natal.

Todos preferimos a concórdia, quer dizer, quase todos! Mas, enquanto perdurar a ideologia aristocrática disfarçada de “interesses institucionais”, não haverá paz. Luiz Henrique é só mais um governo. Um governo que, por conveniência política e eleitoral, nos prometeu o céu. Quando pedimos pelo menos uma vaga no purgatório, nos chamou de ingratos. Quando fomos buscar o céu prometido pelos meios que dispúnhamos, abraçou o diabo e nos empurrou para o inferno. Mas ele perdeu! Nossa força de resistência tem sido maior que seus pactos demoníacos. Estamos todos aqui!

Aqueles oficiais que efetivamente defendem a instituição sabem que o maior valor a defender é o moral elevado de seus integrantes. Aqueles que não foram contaminados pela ideologia aristocrática, sabem que é preciso aumentar muito os salários e os direitos dos de baixo, e não buscam dissimulações discursivas para concordar discordando, humanizar punindo, instruir humilhando. A estes oficiais, elevamos nosso pedido para que tomem as fontes de poder da instituição militar em suas mãos, e ajam com a dignidade que “a tropa” espera e deseja do fundo do coração.

Quando prevalecer essa nova lógica, essa nova filosofia, os homens de branco e as mulheres de lilás poderão orgulhar-se da instituição, abraçar seus superiores sem que isso seja “promiscuidade”, dedicar sua vida integralmente à causa justa da defesa da sociedade.

Agora já é tarde de 25 de dezembro! E eu continuo com saudade de todos e de todas! Continuo sonhando também, mas colocando objetividade no sonho. Aqui em casa, a Edileuza, a mãe e o filho. Natal é sempre nascimento! E continuamos nascendo a cada dia, mesmo que as forças da oligarquia tentem nos matar a cada instante. Eles passarão. Aliás, já demoraram por aqui! Foram ungidos pelo nosso voto; agora querem matar nossa alma. Não conseguirão nos arrastar ao inferno, pois nossa dignidade é maior que a estupidez deles. Venceremos!!!

Saudações aos homens e mulheres que lutam!

São José, 25 de dezembro de 2009.



2º Sgt RR Amauri Soares

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